23/03/2012

A Cidade dos Outros

 

Comentava neste fim de semana com a Bia, enquanto passávamos por uma obra na região portuária do Rio, próximo à rodoviária: "Acho que passadas todas as turbulências, o Rio será uma cidade melhor para se viver. Mais organizada, melhor planejada, com mobilidade mais simples. Acho que será uma cidade mais moderna. Para quem conseguir sobreviver a ela".

Acredito mesmo que o Rio será, do ponto de vista urbanístico, uma cidade melhor pós-2016. Mas não será uma cidade para os que a construíram (o que, admito, é um contra-senso, pois o melhor dessa cidade é seu povo - e isso não é um clichê). Será uma cidade melhor, mas destinada a outro povo, construída para uma outra classe. Neste novo Rio não caberão os cariocas da gema que hoje andam pelas quebradas da cidade. Não caberão os malandros, a não ser aqueles de terno e gravata. Não caberão as mulatas dos requebros febris. Este Rio que está sendo construído, da forma com que está sendo construído, é para uma outra gente.

Não é uma previsão apocalíptica, antes fosse essa minha mania de ser exagerado. Desta vez, apenas me reporto aos fatos. Vamos a eles:

O Morro da Providência é a primeira favela do Brasil. Guarda um pouco da história do Rio e da cultura brasileira em suas casas, em sua gente. Casas que vão ser demolidas, gente que vai ser removida. Pois pasmem: mais de oitocentas casas estão previstas de serem derrubadas, por baixo pode-se pensar em três ou quatro mil moradores. Serão mandados para algum ponto da cidade. No lugar do imóveis que vão para o chão, passará um teleférico. Lá em cima onde os garotos jogam bola, será construído um mirante. Os turistas certamente vão adorar a vista.

O porteiro trabalha em um prédio na Vila Isabel. Foi no bairro que ele cresceu e morou por muitos anos, pagando um módico aluguel em um apartamento perto do Morro. Mas de repente Vila Isabel deixou de ser um bairro que cabia em seu bolso. Comprar seu próprio lugar virou tarefa impossível depois que o preço dos imóveis triplicou em curto espaço de tempo. Foi para Campo Grande, do outro lado da cidade. Para chegar ao seu trabalho, acorda quatro e meia da manhã. Vem de trem porque "só demora uma hora para chegar". A filha insiste em ficar por aqui e alugou uma casinha no Engenho Novo. De vez em quando vai visitar os pais na longínqua Zona Oeste. Só de vez em quando.

A dona da venda também vai ser removida. Ela mora na Indiana, uma das favelas que integram aquilo que o poder público agora resolveu chamar de Complexo do Borel, um aglomerado de sete favelas na Tijuca. Moradora da região há quase trinta anos, agora a pequena comerciante vê-se na iminência de ser mandada para um dos imóveis que o governo construiu em Triagem. Não me pergunte onde fica. "O apartamento até que é bom", começa o filho, "mas nossa vida está construída aqui", completa a mãe. Por vida, entenda-se a escola, os familiares, o posto de saúde, o espaço onde eles resolveram vender seus produtos artesanais há poucos meses para compor a renda familiar. "Nem regularizamos ainda porque dizem que vão nos tirar daqui, remover. Depois vou ter que pagar tudo de novo se eu for para outro lugar?", pergunta. A alternativa para a família, se não quiser ir para Triagem, é receber uma indenização do governo para procurar um imóvel por conta própria. O valor da indenização parece piada. E deve ser: entre dez e vinte mil reais. "Só este ponto custou trinta", revela a mulher, enquanto enumera as economias, empréstimos e prestações que fez para comprar o espaço de dois metros quadrados.

O Maracanã! Maior templo do esporte mais popular do país. Quase um bilhão em obras, cerca de trinta meses parado. Quando chegar ao fim, será um dos estádios mais modernos do mundo. O campo, explica o repórter, vai ser rebaixado em tantos centímetros, a arquibancada estará a apenas tantos metros do campo, a cobertura será totalmente nova em material sustentável de última tecnologia, os cento e dez camarotes serão mais espaçosos, mais luxuosos, com melhor visão de campo. E a Geral, seu repórter? Onde ficarão as arquibancadas populares? Me explica nesta sua reportagem: povo vai sentar em que lugar? O anjo rubro-negro, o Barack Obama brasileiro, o papa tricolor, os caixões dos adversários, as faixas "mãe, to na Globo", nada disso terá espaço na arena? Não combinam mais com o Novo Maracanã?

Está nascendo uma nova cidade. A dos milionários que gastaram meio milhão de reais na noite de inauguração da Daslu carioca. A dos empresários que escondem bem escondido o dinheiro da propina na garrafa de whisky. A do filho de empresário dono de uma fortuna de trinta bilhões de dólares que vai ao twitter dizer que vai fazer caridade por pagar o enterro de oito mil reais do ciclista pobre que ele matou. A da madame que mora numa cobertura em São Conrado, a cem metros da maior favela da América Latina, e acha um absurdo o traficante preso ter uma mansão de dois quartos e uma piscina enquanto pessoas a seu lado vivem em condição de miséria.

Um novo Rio está nascendo. Mas não se alegre, ele não foi feito para você.



Tá vendo aquele edifício moço?
Ajudei a levantar
Foi um tempo de aflição
Eram quatro condução
Duas pra ir, duas pra voltar
Hoje depois dele pronto
Olho pra cima e fico tonto
Mas me chega um cidadão
E me diz desconfiado, tu tá aí admirado
Ou tá querendo roubar?
Meu domingo tá perdido
Vou pra casa entristecido
Dá vontade de beber
E pra aumentar o meu tédio
Eu nem posso olhar pro prédio
Que eu ajudei a fazer

Cidadão - Zé Geraldo




5 comentários:

Diego Santos disse...

Incrível! COnseguiu expressar o que está entalado na minha garganta há algum tempinho!! Muito bom o texto!

Alexis disse...

Muito bom Jader, na verdade, excelente!

Giovana disse...

É isso. Parece exagero, mas não é.

Unknown disse...

Só pra ilustrar.. mais um FATO: uma amiga foi ao CARIOCA DA GEMA um mes e meio atras e perguntou pra Ana Costa (Cantora que cantava por lá todos os sabados) porque ela só tocava mpusicas do tipo "Brasil, meu Brasil brasileiro...", entre outras que levam a palavra Brasil, e não tocava outros bons sambas de Noel, Cartola... A Ana falou: o show é pros gringos, bem ou mal eles é que gastam por aqui.

Bia Paixão disse...

E nós, pra onde vamos?