08/01/2012

Miriam Leitão e as Cotas

"Acusar de promover o racismo o primeiro esforço anti-racista após 118 anos do fim da escravidão é uma distorção inaceitável"

Que boa surpresa encontrei ao ler um artigo da jornalista Miriam Leitão sobre as Cotas Raciais. Não tenho muito o que dizer, Miriam diz tudo, com uma lucidez que poucas vezes vi nas discussões sobre o tema (e olha que já vi muitas discussões, participei de algumas delas).
Vou postar aqui três textos da jornalista - que, confesso, admiro muito quando foge de suas eventuais análises econômicas (o artigo O Menino Azul é magnífico exemplo do que digo). Fosse eu o editor de O Globo, tiraria Miriam do Panorama Econômico e a colocaria num lugar privilegiado para falar apenas das questões do Rio, dos povos, da sociedade. Pessoalmente, acho que se sai melhor. Mas certamente o editor tem bons motivos para mantê-la em Economia, rs.

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Teses e truques


Em vez de discutir cota, é melhor investir na educação. Não se deve adotar um sistema que separa por raça, pois isso criará racismo. Não se pode ferir o princípio constitucional de que todos são iguais perante a lei. Nunca pode ser revogado o princípio do mérito acadêmico. Os argumentos se repetem e parecem ótimos. Escondem a mesma resistência ao tema racial que temos mantido desde a abolição e as conclusões estão truncadas.

Nunca, os que defendem cotas raciais na universidade propuseram a escolha entre cotas e qualidade da educação. Não há essa dicotomia. É uma falsidade para truncar o debate. É fundamental melhorar a educação em todos os níveis. As cotas raciais não revogam essa idéia.

O princípio da igualdade perante a lei é a pedra que sustenta as sociedades democráticas e modernas. As ações afirmativas não vão revogá-lo. A igualdade perante a lei sempre conviveu com o tratamento diferente aos desiguais. Na área tributária, a regressividade, por exemplo: a alíquota para os mais ricos é maior. As transferências de renda são para quem tem renda abaixo das linhas de pobreza e miséria. Mulheres estão sub-representadas na política e, para tentar vencer isso, há a cota de 30% nas candidaturas. No comércio internacional, existe o princípio do tratamento diferenciado para os países mais pobres. Há muito tempo, o Direito convive com os dois princípios, como complemento um do outro. Um garante o outro. Tratar da mesma forma os desiguais acentua a desigualdade. O princípio da igualdade perante a lei é apresentado na discussão como um truque. Não há conflito entre ele e o outro princípio civilizatório do tratamento diferenciado aos desiguais. Quem quer defender o princípio da igualdade perante a lei deveria fazer um manifesto contra, por exemplo, a aberração de prisão especial para criminosos com curso superior.

O mérito acadêmico tem que ser preservado na formação universitária. Ele não está sob ameaça com medidas para aumentar o ingresso de negros na universidade. As avaliações de desempenho de diversas universidades mostram que não há esse risco. Os adversários das cotas rejeitam as avaliações dizendo que ainda não foi feito um estudo consistente. O mesmo argumento invalida seus próprios argumentos de que a qualidade da universidade estará em risco com as cotas. A universidade americana, que nunca abriu mão do mérito acadêmico, dá pontuação diferenciada por razões raciais, sociais e até aos esportistas no ingresso nas escolas.

Não podem ser adotadas políticas que incentivem o racismo. Quem discordaria disso? Esse argumento usado contra as cotas é um dos mais perversos truques. As políticas de ação afirmativa não vão criar o racismo. Não se cria o que já existe. O Brasil tem um fosso enorme, resistente, entre brancos e negros e é esse fosso que se pretende vencer. Sem o incentivo à mobilidade, o Brasil carregará para sempre as marcas da escravidão. Ela tem se eternizado por falta de debate e de políticas dedicadas a superar o problema.

Empresas internacionais adotam há tempos metas para aumentar a diversidade de seus funcionários, executivos e gerentes. É um objetivo desejável no mundo multiétnico e que se quer menos racista e menos injusto. Órgãos públicos americanos usam nas suas contratações mecanismos para aumentar a representatividade das várias partes da sociedade. Governos diversos usam incentivos para determinadas políticas como parte dos seus critérios de seleção de fornecedores nas compras governamentais. Nada há de errado e novo nessas políticas. O que há é que, pela primeira vez, fala-se em usar esses mecanismos para promover a ascensão dos negros no Brasil. O país tem um horror atávico a discutir o tema. Já se escondeu atrás de inúmeros sofismas. Acreditava estar numa bolha não racial, um país diferente, justo por natureza.

Não existe raça. É fato. Biológica e geneticamente não existe, como ficou provado em estudos recentes. Isso é mais um argumento a favor das políticas anti-racistas e não o contrário. Os avanços acadêmicos na área só servem para mostrar que os negros são mais pobres, têm piores empregos, ganham menos, não por qualquer incapacidade congênita, mas por falha da sociedade em construir oportunidades iguais. Isso se corrige com políticas públicas, iniciativas privadas, para desmontar as barreiras artificiais ao acesso dos negros à elite.

O debate é livre e benéfico. O problema não é o debate, mas alguns dos argumentos. E pior: os truques. Acusar de promover o racismo o primeiro esforço anti-racista após 118 anos do fim da escravidão é uma distorção inaceitável.

Quem gosta do Brasil assim deve ter a coragem de dizer isso. Quem não acha estranho, nem desconfortável, entrar nos restaurantes e só ver brancos, ver na direção das empresas apenas brancos, conviver com uma elite tão monocromática, tudo bem. Deve simplesmente dizer que prefere conservar o Brasil como ele é, com os brancos e negros mantidos assim: nesta imensa distância social.

(11 de julho de 2006)

* * * * *

Ora, direis!

A luta contra a escravidão foi um movimento cívico de envergadura. Misturou povo e intelectuais, negros e brancos, republicanos e monarquistas. Foi uma resistência que durou anos. Houve passeatas de estudantes e lutas nos quilombos. Houve batalhas parlamentares memoráveis e disputas judiciais inesperadas. Os contra a abolição reagiram nos clubes da lavoura, na chantagem econômica e nos sofismas.

O país se dividiu e lutou. Venceu a melhor tese. Pena o país ter feito o reducionismo que fixou na memória coletiva apenas o instante da assinatura da lei pela Princesa. Tudo foi varrido. Do povo em frente ao Paço à persistência para se aprovar a lei que tornou extinta a escravidão no Brasil.

Foram seis anos de lutas parlamentares para libertar os não-nascidos, após quedas de gabinetes, avanços e retrocessos. Mais luta de vários anos para libertar os idosos. Por fim, a maior das batalhas: a libertação de todos.

Lutou-se com poesia e o jornalismo. Com a política e o Direito. Lutou-se na Justiça com as Ações de Liberdade, incríveis processos que escravos moviam contra seus donos. Os negros lutaram de forma variada: com a greve negra em Salvador, com rebeliões e quilombos. Os escravocratas adiaram o inevitável, ameaçaram com a derrota econômica, assombraram com todos os fantasmas nacionais. Pareciam vencer, até que perderam.

Fica em quem visita a história a constatação de um erro: os abolicionistas se dispersaram cedo demais. Era a hora de reduzir a imensa distância que a centenária ordem escravocrata havia criado no país. Venceu a idéia de que, deixado ao seu ritmo, o país faria naturalmente a transição da escravidão negra para um outro país, sem divisões raciais. Idéia poderosa esta da inércia salvacionista. Ela construiu o imaginário de um país sem racismo por natureza, que teria eliminado o preconceito naturalmente, como se as marcas deixadas por 350 anos de escravidão fossem varridas por um ato, uma lei de duas linhas. Ainda há quem negue, hoje, que haja algo estranho numa sociedade de tantas diferenças.

O manifesto contra as cotas tem alguns intelectuais respeitáveis. Mais os respeitaria se estivessem pedindo avaliações e estudos sobre o desempenho de política tão recente; primeira e única tentativa em 120 anos de fazer algo mais vigoroso que deixar como está para ver como é que fica. O status quo nos trouxe até aqui: a uma sociedade de desigualdades raciais tão vergonhosas qualquer um que não tenha se deixado anestesiar pela cena e pelas estatísticas brasileiras.

Ora, direis: o que tem o glorioso abolicionismo com uma política tópica – para tantos, equivocada – de se reservar vagas a pretos e pardos nas universidades publicas?

Ora, a cota não é a questão. Ela é apenas o momento revelador, em que reaparece com força o maior dos erros nacionais: negar o problema para fugir dele. Os "negacionistas" – expressão da professora Maria Luíza Tucci Carneiro, da USP – sustentam que o país não é racista, mas que se tornará caso alguns estudantes pretos e pardos tenham desobstruído seu ingresso na universidade.

Erros surgiram na aplicação das cotas. Os gêmeos de Brasília, por exemplo. Episódios isolados foram tratados como o todo. Tiveram mais destaque do que a análise dos resultados da política. Os cotistas subverteram mesmo o princípio do mérito acadêmico? Reduziram a qualidade do ensino universitário? Produziram o ódio racial? Não vi até agora nenhum estudo robusto que comprovasse a tese manifesta de que uma única política pública, uma breve experiência, pudesse produzir tão devastadoras conseqüências. Os órgãos de comunicação têm feito uma enviesada cobertura do debate. Melhor faria o jornalismo se deixasse fluir a discussão, sem tanta ansiedade para, em cada reportagem, firmar a posição que já está explícita nos editoriais. A mensagem implícita em certas coberturas só engana os quer não têm olhos treinados.

Ora, direis, que vantagens podem ter políticas que atuam apenas no topo da escala educacional? Ter mais pretos e pardos junto aos brancos, nas universidades públicas, permite a saudável convivência no mesmo nível social. Na minha UnB, não havia negros; na atual, há mais de dois mil. Isso é um começo num país com o histórico do Brasil.

Melhorar a educação pública sempre será fundamental para construir o país futuro, mas isso não conflita com outras políticas desenhadas diretamente para derrubar as barreiras artificiais e dissimuladas que impedem a ascensão de pretos e pardos. O vestibular não mede a real capacidade do aluno de estar numa universidade, mas, sim, quem aprendeu melhor os truques dos cursinhos. Há muito a fazer pelo muito não feito neste longo tempo em que se esperou que, deixando tudo como está, tudo se resolveria. Ajudaria se intelectuais, ou não, quisessem avaliar as políticas de ação afirmativa, em vez de ter medo delas.

O racismo brasileiro é ardiloso e dissimulado. A luta contra ele será longa e difícil. Será mais eficiente se unir brancos e negros. Será mais rápida se o país não acreditar nas falsas ameaças de que tocar no assunto nos trará o inferno da divisão por raças. Ora, a divisão já existe; sempre existiu. O que precisa ser construído são os caminhos do reencontro.

(25 de maio de 2008)

* * * * *

Destruir a obra

É a temporada. Tempo de sofismas e argumentos tortos. Tempo das mesmices repetidas com ares de descobertas recentes. Hora de escapar do debate sobre a questão racial brasileira. Não precisava ser assim. Podia ser um tempo de avanços. Mas os que negam o racismo brasileiro preferem esse cerco à inteligência, ao óbvio, ao progresso.

Num ambiente negacionista, foi um alívio ouvir as explicações simples e diretas da secretária de Estado americana Hillary Clinton na Faculdade Zumbi dos Palmares, onde escolheu debater com estudantes. Hillary defendeu as ações afirmativas dizendo que, com elas, os EUA estão deixando para trás os vestígios da escravidão:

— Temos feito um grande progresso com as ações afirmativas em aumentar as oportunidades na educação, no emprego para os afro-americanos. Elas são o reconhecimento de que as barreiras históricas criam um funil que impede o acesso do grupo discriminado a níveis superiores de educação. É preciso alargar a entrada e deixar mais gente entrar. O talento é universal, mas as oportunidades, não. O acesso na universidade não é, no entanto, a garantia da graduação.

Hillary contou que, como professora de Direito, percebeu que muitos alunos que entraram por ação afirmativa tiveram dificuldades maiores pelas falhas da educação anterior. Ela se dedicou a esses alunos no sistema tutorial:

— Simplesmente não podemos aceitar os estudantes na universidade para deixar que eles falhem. Eles têm que ser ajudados.

O sistema americano é diferente do nosso, mas discriminação é parecida em qualquer país do mundo. Ela barra com obstáculos sutis ou explícitos, negados ou assumidos, a ascensão de grupos discriminados por qualquer motivo, racismo, sexismo, ou outras intolerâncias. Lá, eles não têm cotas, não têm vestibular; o sistema, como se sabe, é o de application, o de se candidatar a uma vaga apresentando suas credenciais escolares. Ao avaliar quem entra, as escolas dão pontuação maior a quem vem de um grupo discriminado. Cada universidade tem um critério, um método e uma meta diferente, mas todas buscam um quadro de alunos com diversidade. Os alunos com menos chance de estar lá têm preferência nas bolsas para as caríssimas universidades privadas americanas.

— Estou muito orgulhosa das conquistas dos últimos 50 anos do movimento dos direitos civis, pelos que lutaram como Martin Luther King e outros, mas não posso dizer que o meu país não tem racismo, não tem sexismo — disse a mulher que comanda a mais poderosa diplomacia do mundo e é chefiada por um negro, que preside o maior país do mundo. Ela não vê a sua ascensão, nem a do presidente Obama, como provas de que não há barreiras para negros e mulheres.

Essa sinceridade é encantadora porque é rara no Brasil. Esse reconhecimento da existência do problema, e de que ele é vencido por ações concretas de políticas públicas e de empresas, dá esperança.

No Brasil, o esforço focado nos negros é chamado de discriminação. E os brancos pobres? Perguntam. Eles estão também nas ações afirmativas, e nas cotas, mas o curioso é que só se lembre dos brancos pobres no momento em que se fala em alguma política favorável a pretos e pardos.

É temporada da coleção de argumentos velhos que reaparecem para evitar que o Brasil faça o que sugeriu Joaquim Nabuco, morto há 100 anos, em frase memorável: “Não basta acabar com a escravidão. É preciso destruir sua obra.”

Diante de qualquer proposta para reduzir as desigualdades raciais, principal obra da escravidão, aparece alguém para declamar: “Todos são iguais perante a lei.” E são. Mas o tratamento diferenciado aos discriminados existe exatamente para igualar oportunidades e garantir o princípio constitucional.

O senador Demóstenes foi ao Supremo Tribunal Federal com um argumento extremado: o de que os escravos foram corresponsáveis pela escravidão. “Todos nós sabemos que a África subsaariana forneceu escravos para o mundo antigo, para a Europa. Não deveriam ter chegado na condição de escravos, mas chegaram. Até o princípio do século XX, o escravo era o principal item de exportação da pauta econômica africana.”

Pela tese do senador, eles exportaram, o Brasil importou. Simples. Aonde o crime? Tratava-se apenas de pauta de comércio exterior. Por ele, o fato de ter havido escravos na África; conflitos entre tribos; tribos que capturavam outras para entregar aos traficantes, e tudo o mais, que sabemos, sobre a história africana, isenta de culpa os escravizadores. Trazido a valor presente, se algumas mulheres são vítimas de violência dos maridos, isso autoriza todos a agredi-las. Ou se há no Brasil casos de trabalho escravo e degradante, isso permite aos outros povos que façam o mesmo conosco. Qual o crime? Se brasileiros levam outros brasileiros para áreas distantes e, com armas e falsas dívidas, os fazem trabalhar sem direitos, qualquer povo pode escravizar os brasileiros.

O senador Demóstenes é um famoso sem noção e com ele não vale a pena gastar munição e argumentos. Que ele fique com sua pobreza de espírito. O que me incomoda é a incapacidade reiterada que vejo em tantos brasileiros de se dar conta do crime hediondo, do genocídio que foi a escravidão brasileira. Não creio que as ações afirmativas sejam o acerto com esse passado. Não há acerto possível com um passado tão abjeto e repulsivo, mas feliz é a Nação que reconhece a marca dos erros em sua história e trabalha para construir um futuro novo. Feliz a Nação que tem, entre seus fundadores, um Joaquim Nabuco, que nos aconselha a destruir a obra da escravidão

(07 de março de 2010)

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