27/09/2011

Lula e a ira do andar de cima


Lula, silêncio por favor. Os da Casa Grande estão irritados.

Assim um jornalista argentino termina seu artigo sobre a posição da imprensa brasileira em relação ao título de Doutor Honoris Causa recebido por Lula essa semana. Explico: o ex-presidente foi escolhido por unanimidade para receber a homenagem pelo Instituto de Estudos Políticos de Paris - o Sciences-po. O instituto é um dos mais prestigiados do mundo e em seus 140 anos já abrigou “a nata da elite francesa”, como os ex-presidentes Jacques Chirac e François Mitterrand. Apenas 15 pessoas já haviam sido contempladas com a honraria e Lula foi o primeiro latino-americano a recebê-la.

Enfim, imaginam a histeria por aqui, não é? Porque o torneiro mecânico não se contentou em ser presidente. Foi presidente, tirou 30 milhões da miséria, saiu com 80% de popularidade, se tornou prestigiado em todo o mundo. E isso irrita. Irrita porque, parafraseando-o, esse país não foi pensado para ser governado pelos que estão no andar de baixo. E quem ousa desafiar essa regra não pode ficar impune.

Em uma entrevista coletiva concedida pelo diretor do instituto, Richard Descoings, a primeira pergunta, vinda de um grande e respeitado jornal brasileiro, foi a seguinte: “Por que Lula e não Fernando Henrique Cardoso, seu antecessor, para receber uma homenagem da instituição?”. Não é mentira. Está no site do jornal. A pergunta seguinte, também de jornalistas brasileiros, questionava do motivo de um prêmio entregue a alguém que se orgulhava de nunca ter lido um livro. Em seguida, no mesmo tom: “Por que premiam a um presidente que tolerou a corrupção?”. O nível continuou o mesmo e outro coleguinha brasileiro foi ao ponto, usando-se de ironia: seria essa premiação do Lula parte da política de ação afirmativa do Sciences Po?

O Brasil avançou muito nesses oito anos, mas parte da elite brasileira segue estagnada, sem ter movido um músculo, dado um passo sequer rumo à superação da pior das mazelas e misérias de uma nação, o preconceito. Separei quatro comentários de leitores à notícia da premiação de Lula. Ilustram bem o que digo. Vejam:

1 - “Gostaria de saber quanto o metalúrgico/enganador está pagando para receber "eçças" honrarias. Pois não tem outra explicação” 

2 - “O mais novo símbolo do Brasil, um jegue”

3 - “Ovacionar uma toupeira dessas, é o fim da picada”

4 - “Vou tirar o meu título da parede e deixar só o de pós-doutorado. Se até o Lula (...) é doutor, me sinto diminuído”

Não são críticas políticas, apenas. Estas são legítimas e precisam ser feitas (na dúvida, leiam meu último post). Os comentários dos leitores, as perguntas dos jornalistas, as reações em alguns círculos sociais, demonstram um ranço preconceituoso que ainda persiste e um ódio de classes longe de ser superado.

Eu tenho orgulho. Independente de posição política – ou mesmo da avaliação que se faça sobre seu governo – tenho orgulho de viver em um país que elegeu para o cargo máximo da República um retirante saído do Nordeste em pau-de-arara, torneiro mecânico e líder metalúrgico, fundador do maior partido de massas da América Latina. Isso é prova de um povo maduro, que soube que somente um dos seus poderia entender suas dores. E isso, repito, me enche de orgulho. 

Por fim, deixo o próprio Lula dar uma resposta a tanto preconceito. É uma resposta-desabafo. Esse vídeo é indispensável. Espero que vocês tenham paciência de ver até o fim. Um grande amigo, quando viu, soltou essa: “cara, sempre fiquei pensando se conseguiria explicar ao meu filho o que significou eleger o Lula presidente do Brasil. Para ele compreender a dimensão do que significa, agora já sei o que fazer: vou mostrar esse vídeo”. É exatamente isso.

(Lula fala adevogado. Fala "autoestima por si mesmo". Como alguns
devem se contorcer assistindo esse vídeo. Quem esse "anarfa" pensa que é?!)

22/09/2011

Sobre os Diferentes e os Antagônicos...


Em política, tem que se tomar cuidado com o que se diz. Agora o mais novo alvo de seu próprio palavrório é o PSOL...

Há menos de um ano, Jefferson Moura, candidato do partido ao Governo do Estado e atual presidente da sigla, criticava duramente o "ex-Gabeira", em referência ao abandono de princípios ideológicos de seu oponente, o Verde Fernando Gabeira. Ao mesmo tempo, Plínio de Arruda chamava sua adversária Marina Silva de "eco-capitalista", colocando em polos opostos suas candidaturas, no que tange à temática ambiental.

Agora estarão todos eles no mesmo palanque para tentar eleger Marcelo Freixo prefeito do Rio: Jefferson, Plínio, o ex-Gabeira e a eco-capitalista. Vão usar o mantra "unir-se aos diferentes para combater os antagônicos" tão utilizado por Lula para justificar o injustificável (Sarney, Jader e etc)?

A questão aí é: quem são os diferentes? E quem são os antagônicos? Essa separação se dá por questões programáticas ou pragmáticas? O Gabeira que era antagônico na eleição passada pode ser apenas diferente nesta? Ou nunca foi antagônico? E agora, José?

21/09/2011

Saudades de quem não conheci (por Ricardo Vieira)

Compartilho mais uma vez este espaço com meu amigo Ricardo Vieira, autor do post recordista de visualizações neste blog. Desta vez é um texto de caráter mais intimista - mas igualmente emocionante. E cá ficou eu a pensar: que apurada técnica de escrita tem esse rapaz! rs



Saudades de quem não conheci
(Ricardo Vieira)

João Carlos Vieira

Tinha meus 13, 14 anos. Na saída do colégio peguei carona com um amigo e sua mãe. Veio a tradicional pergunta: “Você é filho de quem?”. Ela não conhecia meus pais, por isso lembrei: “dizem que eu pareço muito com meu tio, que já faleceu”. Ela olhou pelo retrovisor, tomou um susto e quase parou no meio da rua. “Nossa, deu até arrepio”, “o sorriso é igual”.

Eu sei que parece. Aliás, sei disso a minha vida inteira. Ele morreu aos vinte e poucos anos, vítima de violência, e eu não tive oportunidade de conhecê-lo. Mas a sensação não é essa. Hoje, mais do que nunca, sinto saudades.

Só eu sei o orgulho e o peso dessa semelhança. Em determinado momento de sua vida, minha avó trocou definitivamente o Rico pelo Joãozinho. Poder aliviar de alguma forma a dor de uma mãe que perde um filho era reconfortante, na mesma medida que dava medo. Simplesmente por ser uma pessoa que eu nunca fui.

Para alguns, nossa semelhança vai além dos traços físicos. Boa gente, segundo todos que o conheceram, ele sempre foi uma espécie de espelho pra mim. E o reflexo sempre foi nítido.

Já com meus vinte e tantos, ainda penso em meu tio, como... tio mesmo. Ainda o imagino mais velho, ainda o respeito. O difícil é conter a curiosidade.

Quantas, e quantas vezes, não imaginei como teria sido a vida se estivesse aqui conosco? Seria meu tio preferido, seus filhos seriam meus melhores amigos, ou talvez eu pudesse ser padrinho de um deles. Quem sabe não trabalharíamos juntos? Quem sabe não jogaríamos futebol no mesmo time? Ou contra. Seria ótimo. Ele estaria lá na minha formatura. E quando os pais dele partiram, eu daria força e ele teria me dado, porque eu precisei. A família seria unida.

O sonho bom não condiz com a realidade. A verdade é que a vida não é do jeito que a gente idealiza. E se o João estivesse vivo, é pouco provável que as coisas fossem assim. A vida seria melhor, eu acredito nisso, mas da forma como eu descrevi... dificilmente. Outra verdade é que se morte chegasse precocemente pra qualquer outro parente, a sensação seria a mesma.

É mais cômodo sentir saudade de quem não está mais por aqui.

Família é família, e problemas não são exclusividade da minha. Independente deles eu torço por quem me viu crescer e cresceu comigo. Os rumos seguem sendo tomados e eu não estou aqui pra julgar ninguém. Cada um sabe onde o próprio calo aperta. Não guardo mágoa e espero - de coração - não magoar ninguém. Continuo tendo o maior respeito por cada um. Acho que seria assim que o tio João agiria.

Saudades tio, saudades família.

14/09/2011

Em 20 anos tudo pode mudar. Ou não.

Na esteira de uma ideia do portal G1, recebi por email uma sugestão do que seria a capa do site do Diário do Vale daqui a vinte anos: em 2031, portanto. É engraçado. Bem engraçado, aliás!
Apesar de não conter ofensas graves a ninguém ou à alguma entidade, optamos por publicar mantendo o anonimato. Espero que vocês gostem. Se vir alguma piada mais grosseira, que lhe afete de alguma maneira, antecipadamente peço desculpas e sugiro que pule para a próxima notícia. (lamento por meus dois ou três leitores fora de Volta Redonda. Acho que esse post só terá graça para quem vive - ou viveu - no Sul Fluminense).





P.S.: Observem os detalhes. As notícias principais, o que está em destaque é bem engraçado. Mas a imagem é fenomenal pelos pequenos detalhes, as notícias menores. Para quem acompanha o dia a dia da região, e especialmente quem está ligado no site do Diário, algumas coisas são espetaculares, como o tema do Espaço Aberto do dia, a notícia de Angra e o guarda que descobriu a cura para o Alzheimer. Enfim, se divirtam...

13/09/2011

O Cativeiro (por Eliane Brum)

Sempre quis publicar um texto da Eliane Brum neste espaço. Para quem não conhece, Eliane é uma das jornalistas mais premiadas do Brasil e posso dizer sem medo de errar que possui, hoje, o melhor texto da imprensa brasileira. Não conheço todos os jornalistas Brasil a fora, mas basta conhecer Eliane para ter certeza que é o supra-sumo da arte de narrar o cotidiano.
Atualmente, Eliane tem uma coluna semanal no site da revista Época e acabou de lançar seu primeiro livro de ficção, Uma Duas. É também documentarista e foi uma das dez jornalistas, de diferentes partes do mundo, convidadas pela ONG Médico Sem Fronteiras para escrever um livro internacional sobre os quarenta anos de atuação da entidade.
Mas tem algo mais sobre a Eliane Brum (e dessa informação só quem já teve o prazer de desfrutar de sua presença pode dizer): ela hipnotiza. É impossível sair indiferente de uma palestra sua (e já participei de duas). Você sai encantado, maravilhado, agradece a Deus mil vezes por ter escolhido ser jornalista - se é que é uma escolha. Pode parece exagero. Mas para a nossa felicidade, não é.
Enfim, escolhi esse texto porque fui um dos que mais me impactou dentre todos os que já li. Ele pode ser encontrado no livro A vida que ninguém vê, uma coletânea das melhores crônicas-reportagens publicadas na coluna de mesmo ano no jornal gaúcho Zero Hora. A obra foi vencedora do Prêmio Jabuti em 2007. E o texto que escolhi é arrasador. Espero que gostem...




O Cativeiro




O Zoológico de Sapucaia do Sul abrigou um dia um macaco chamado Alemão. Em um domingo de sol, Alemão conseguiu abrir o cadeado e escapou. Ele tinha o largo horizonte do mundo à sua espera. Tinha as árvores do bosque ao alcance de seus dedos. Tinha o vento sussurrando promessas em seus ouvidos. Alemão tinha tudo isso. Ele passara a vida tentando abrir aquele cadeado. Quando conseguiu, virou as costas. Em vez de mergulhar na liberdade, desconhecida e sem garantias, Alemão caminhou até o restaurante lotado de visitantes. Pegou uma cerveja e ficou bebericando no balcão. Os humanos fugiram apavorados.

Por que fugiram?

O macaco havia virado um homem.

O perturbador desta história real não é a semelhança entre o homem e o macaco. Tudo isso é tão velho quanto Darwin. O aterrador é que, como homem, o macaco virou as costas para a liberdade. E foi ao bar beber uma.

Um zoológico serve para muitas coisas, algumas delas edificantes. Mas um zoológico serve, principalmente, para que o homem tenha a chance de, diante da jaula do outro, certificar-se de sua liberdade. E da superioridade de sua espécie. Pode então voltar para o apartamento financiado em 15 anos satisfeito com a vida. Abrir as grades da porta contente com seu molho de chaves e se aboletar no sofá em frente à TV. Acorda na segunda-feira feliz para o batente. Feliz por ser homem. E por ser livre.

Há duas maneiras de se visitar um zoológico: com ou sem inocência. A primeira é a mais fácil. E a única com satisfação garantida. A outra pode ser uma jornada sombria para dentro do espelho. Sem glamour e também sem volta.

Acompanhe, se quiser.

O babuíno sagrado tem um nome comum. Beto. À espreita, lá onde os olhos se misturam com a mente, há o mais perigoso tipo de fúria. A da importância. Beto dá voltas e mais voltas na jaula, esmurra as grades. Atira comida e fezes nos visitantes. Espanca a companheira se ela não faz tudo o que ele quer. Não admite que emita um som sem a sua permissão. Não deixa que arrede pé sem a sua complacência. Se o faz, Beto cobre-a de tapas. Se a tiram de perto dele, Beto piora. Começa a arrancar pedaços do próprio corpo. Durante as crises, Beto toma dez miligramas de Valium por dia.

Os tigres-de-bengala são reis de fantasia. Têm voz, possuem músculos, são magníficos. Mas nascidos em cativeiro, já chegaram ao mundo sem essência. São um desejo que nunca se tornará. Adivinham as selvas úmidas da Ásia, mas nem sequer reconhecem as estrelas. Quando o sol escorrega sobre a região metropolitana, são trancafiados em furnas de pedra, claustrofóbicas. De nada servem as presas a caçadores que comem carne de cavalo abatido em frigorífico. De nada serve a sanha a quem dorme enrodilhado, exilado não do que foi, mas do que poderia ter sido. E que jamais será.

Anos atrás, um de seus bisavôs galgou a escada do tratador e espiou para além dos muros. Foi o mais longe que um deles chegou. São poderosos, os tigres-de-bengala. Mas quando chega a hora de serem confinados na caverna escura de sua escravidão, viram as costas para a Lua que aponta como promessa e marcham para a jaula. Alquebrados, submissos, como o mais vil animal da floresta.

A ursa-de-óculos é chamada de Peposa. Como se brinquedo fosse. O filho se chama Rayban, também muito engraçadinho. Quando nasceu Rayban, ela fez o que as mães costumam fazer: ensinou a ele a arte da resignação. Pegou-o pela orelha e carregou-o até as entranhas da furna na hora marcada. Hoje, Rayban vai por sua conta. Mas, todos os dias, Rayban desafia a mãe, se esgueira e testa o cadeado. Sem jamais ter aspirado o perfume gelado da cordilheira de seus ancestrais, Rayban não adivinha o que há do outro lado. Mas intui. E por ser criança ainda não desistiu de buscar.

Pinky vive só. Os outros elefantes, Nely e Mohan, caíram no fosso e sucumbiram. O fosso é a prisão dos elefantes. Mohan viveu seis anos acorrentado porque o cativeiro de sua espécie ainda não estava pronto. Quando o soltaram, durou três meses. Morreu tentando alcançar a liberdade. Ou apenas um dos cães que perambulam por lá e são achados aos pedaços. Dos três, Nely sempre foi a mais indomável. Dezenove anos atrás, matou um visitante. Um mineiro de Criciúma que comemorava a aposentadoria. Recém-liberto da solidão trevosa das minas de carvão, ele montou sobre Nely. Ela o derrubou sobre o chão e esmagou sua cabeça. Tão parecidos em sua tragédia, a elefanta e o homem.

Foram três as vezes em que Nely mergulhou no fosso. Numa delas, perdeu parte da barriga e uma mama na queda. Não desistiu. Morreu na terceira, tentando. Como nunca esquece, a elefanta Pinky assimilou o exemplo. E convenceu-se de que implacável é a punição para quem ousa dar um passo além do permitido.

A revelação dessa visita subversiva ao zoológico é que, no cativeiro, os animais se humanizam. O cárcere lhes arranca a vida, o desejo e a busca. E mais e mais vão se parecendo com os homens que os procuram na certeza de um álibi. Perigosa é a pergunta.

O que aconteceria se você encontrasse a chave do cadeado invisível de sua vida? O que aconteceria se você saltasse sobre o fosso de sua rotina? O que aconteceria se você desse o passo da elefanta?

Bem, talvez seja melhor caminhar até o balcão e beber uma.

06/09/2011

Reflexões sobre a guerra particular

Na última semana, assisti mais uma vez o ótimo documentário “Notícias de uma guerra particular”, de João Moreira Salles e Kátia Lund. O filme é um soco no estômago menos pelo que é dito e mais por quem diz. Não são estudiosos teorizando sobre a violência. São policiais, traficantes e moradores falando da guerra a partir de seus ângulos.

O documentário é direto, franco, não aponta culpados nem indica soluções. Apenas escancara uma realidade vivenciada nos morros do Rio de Janeiro a partir das falas de quem vive essa realidade, em qual lado do front esteja. Quero propor, então, algumas reflexões a partir do filme. São pequenos pontos que fui anotando enquanto assistia ao longa e gostaria de compartilhar. 

O texto está dividido em cinco pontos: Mulheres, Criminalização da Pobreza, Motivações, O Mito CV e Os Discursos. Inicialmente iria publicar este texto em partes. Fui desaconselhado. É grande, mas acho que não está cansativo. Os cinco pontos, de qualquer forma, podem ser lidos de forma independente, se não for possível lê-los de uma vez. Vamos lá:

* Por vezes serei um pouco irresponsável na utilização de termos e conceitos aqui. Os mais xiitas podem ficar bravos com o emprego de expressões como “direito de significar” ou mesmo com o uso indiscriminado da palavra “guerra”, só para ficar em dois exemplos. São questões problemáticas, admito. Eu mesmo sou crítico ao emprego do conceito de guerra para se falar do confronto entre Estado x Poder Paralelo. Mas aqui usei algumas dessas palavras/conceitos para simplificar e também reproduzi para ficar em consonância com o discurso dos personagens do filme. Espero que não fira os ouvidos (ou olhos) mais sensíveis.



1. MULHERES: salta-me aos olhos a força do feminino nas comunidades periféricas dominadas pela violência. Já havia presenciado no Borel, onde trabalho, ao ouvir os relatos das mulheres da favela tijucana. No filme, isso fica ainda mais claro. 

Quando os policiais pegam um moleque, supostamente “bandido”, são elas que vão atrás, não desgrudam dos homens de farda, para garantir que eles levem o garoto em segurança à delegacia. “Se não formos atrás, eles levam lá pra cima e matam”, relata uma. Então elas perseguem os PMs, brigam, obstruem sua passagem, xingam... encontram força sabe-se lá de onde para resistir aos arbítrios e impedir que aconteça o “mal maior”. 

Também são essas mulheres que sobem o morro correndo para impedir que seus irmãos, maridos, vizinhos sejam julgados pelo poder paralelo. Impedem a execução, clamam por justiça, conseguem evitar o pior. É impressionante. É comovente. É desafiador.


2 – CRIMINALIZAÇÃO DA POBREZA: o problema maior não é o tráfico, não são as drogas, não é a violência. O problema é a favela, é ela que precisa ser controlada. Ela representa o perigo, ela representa a desordem. Tem que segurar o morro.                

Logo de cara, o filme traz um dado, dito por um dos entrevistados: há estimativas de que haja 100 mil bandidos no Rio, a maioria deles em favelas. Logo mais, já pro fim do filme, uma outra fala: “São dois milhões de pessoas morando em favelas no Rio, como você controla esse povo todo?”. Há uma discrepância entre os tais 100 mil bandidos e os dois milhões de habitantes das favelas. Se todos esses supostos bandidos morarem em favelas, são apenas 5% da população. O número é infinitamente menor, acredito. Mas mesmo que seja este mesmo, são CINCO POR CENTO. 

Lembro-me de um artigo do Jailson de Souza e Silva, que até utilizei em minha monografia, em que ele citava que o número de universitários da Maré (1,67% da população em 2000) era maior que o de traficantes – apesar da comunidade ser definida, na mídia e pelo Estado, apenas como um dos redutos mais perigosos do tráfico carioca. Um tipo de discurso que interessa a quem (vamos lembrar que todo discurso tem caráter de construção social, já dizia Foucault) e serve a que interesses, a que tipo de política? A resposta vem da boca do chefe da Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro na época, Hélio Luz, um dos entrevistados para o filme:         

“Nós fazemos a segurança do Estado (...) Temos que manter os excluídos sob controle. Vivemos numa sociedade injusta e a polícia garante essa sociedade injusta”, disse ele, de forma nua e crua. Nem é preciso dizer que foi exonerado pouco tempo depois...


3 - MOTIVAÇÕES: outra questão suscitada no documentário é sobre as motivações para a entrada do jovem no tráfico. É um desejo de transformação social coletiva ou apenas necessidade econômica individual? Essa questão também se fez latente nos protestos que acontecem na Inglaterra: os jovens estão nas ruas porque querem mudar a sociedade injusta ou apenas querem se incorporar à sociedade do consumo, de onde hoje são excluídos? As duas questões, distintas, apontam para um mesmo fato: a sociedade é desigual e isso acaba sendo gerador de tais movimentos, de uma forma ou de outra. Mas vamos pensar um pouco mais especificamente sobre o tráfico.            

No filme, vemos alguns dos “soldados” do tráfico reclamarem das injustiças do mundo e de como a favela é discriminada e desassistida. Acreditam que o tráfico ajuda a mudar essa realidade, ao garantir ao menos que algumas das necessidades dos moradores serão atendidas (a oferta de gás e medicação para a população são os exemplos mais clássicos). Eles estariam, desse modo, ocupando um espaço que o Poder Público não ocupa. Suprindo uma lacuna que o Estado deixou.

Por outro lado, os discursos revelam um desejo de “significar”: entram no tráfico para serem respeitados, para poderem comprar tênis da Nike, para que as garotas (do morro e do asfalto) olhem para eles, afinal “as cocotas ficam doidas quando veem um cara com arma”. Sem acesso à escola, ao mercado de trabalho formal, à “porta da frente” da sociedade do consumo, optam pela “via alternativa”.       

Não é simples pensar essa questão. Corre-se o risco de romantizar essas histórias e isso definitivamente não contribui para refletir sobre o quadro. E existe outro ponto importante que gostaria de considerar ainda neste tópico: para além das questões de mudança social nas comunidades ou ascensão econômica individual, o crescimento das facções mudou o caráter do tráfico e a guerra, outrora entre o poder paralelo e o poder “oficial” (por negligente que fosse), se transforma sobretudo numa disputa de poder, de ocupação de territórios. 

As favelas se transformam, mais que nunca, em campos de batalhas de facções rivais e os moradores são, sem dúvida, os que mais saem perdendo. E essa guerra entre facções também é um fator motivador, uma vez que ao ingressar nessa guerra, o jovem pertence a um grupo, faz parte de uma comunidade e batalha pela supremacia deste seu grupo. O Estado, para não perder o costume, se torna ainda mais ausente (é possível?) e utiliza a violência entre as facções como justificativa para não entrar nessas comunidades.        

Então, acho que as motivações para a entrada dos jovens no tráfico precisam ser vistas a partir desses três aspectos: são causas sociais, econômicas e políticas (no sentido de disputa de poder). Complexo. Bem complexo.


4 – O MITO CV: todos sabemos a história de criação do Comando Vermelho. Os presos políticos e os presos comuns que, postos num mesmo espaço, conceberam uma das principais organizações não governamentais (rs) da história recente do estado do Rio. A mistura explosiva teria resultado em lideranças com forte crítica política ao Estado e também bastante eficientes em práticas consideradas criminosas. Mas o CV cresceu, se tornou uma mega estrutura e enquanto a face “criminosa” ainda assusta a sociedade, o viés político ficou em segundo plano. Se perdeu? Acabou? Nunca houve? É, mais uma vez, romantizar a história e transformar bandidos em heróis populares?   

Não sei e nem quero entrar nessa discussão. Só se sabe que com o crescimento, a organização criou ídolos e admiradores, sobretudo entre aqueles garotos com desejo de significar, como falei acima. E o que acontece é que tudo é CV. Os garotos dizem: “Sou CV”, “CVRL”, “Vermelhooo”. Muitos sequer já chegaram perto da organização. Outros, mesmo que façam parte, nem desconfiam de como o Comando surgiu, quem eram seus líderes.

A questão é outra: ser do Comando Vermelho concede uma posição de destaque. Os garotos querem dizer que são CV, como se significasse que pertencem a uma linhagem real, são puro sangue, mangalarga. Assim como estudar na PUC ou morar no Leblon, ser Comando Vermelho concede status. Simples assim.


5 – OS DISCURSOS: me impressiona, ainda, a semelhança entre os discursos dos soldados do tráfico e os soldados da PM. Em determinada sequência do filme, o repórter pergunta: “e qual é a sensação quando você mata o ‘inimigo’?”. Primeiro o bandido: normal, às vezes tem até comemoração. Depois, o policial: é sensação de dever cumprido.              

Em uma palestra que assisti recentemente, o comandante geral das UPPs, coronel Robson, falava disso, comparando um funk proibidão ao filme Tropa de Elite (I). É cruel e revelador. Quem viu o filme (quem não viu?) vai se lembrar da cena final, em que André é considerado policial de verdade por executar, a sangue frio, o inimigo. O funk falava algo neste sentido também, não me recordo a letra. Mas é esse o espírito.           
Ambos os lados vão para a batalha vestidos com a capa da insensibilidade. Ambos acreditam estarem indo para uma guerra. Matar inimigos são apenas ossos do ofício. No caso do bandido, os inimigos são os policiais ou mesmo outros bandidos, de facções rivais. No caso do policial, os inimigos são os bandidos.               

Afinal, “homens de preto, qual é sua missão? Subir pela favela e deixar corpo no chão!”. O grito de guerra, entoado pelos de farda, também vale para os descamisados. Em meio a tantas aparentes diferenças, os dois lados do front de batalhas se igualam – e não só em seus objetivos. Nas favelas do Rio de Janeiro, nas batalhas cariocas transmitidas em forma de espetáculo mundo afora, a tragédia se dá em tons dramáticos: são pobres matando pobres. Jovens matando jovens. Preto morrendo e preto matando. Cada um sob sua farda, portando seu emblema, vai eliminando seu rival, tão oposto, tão parecido! É ou não é de fato uma grande tragédia?


(Um  agradecimento especial à titia Giovana Damaceno, que revisou esse texto e me deu coragem para publicar!)