Na última semana, assisti mais
uma vez o ótimo documentário
“Notícias de uma guerra particular”, de João
Moreira Salles e Kátia Lund. O filme é um soco no estômago menos pelo que é
dito e mais por quem diz. Não são estudiosos teorizando sobre a violência. São
policiais, traficantes e moradores falando da
guerra a partir de seus ângulos.
O documentário é direto, franco,
não aponta culpados nem indica soluções. Apenas escancara uma realidade
vivenciada nos morros do Rio de Janeiro a partir das falas de quem vive essa
realidade, em qual lado do front esteja. Quero propor, então, algumas reflexões
a partir do filme. São pequenos pontos que fui anotando enquanto assistia ao
longa e gostaria de compartilhar.
O texto está dividido em cinco pontos: Mulheres, Criminalização da Pobreza, Motivações, O Mito CV e Os Discursos. Inicialmente iria publicar este texto em partes. Fui desaconselhado. É grande, mas acho que não está cansativo. Os cinco pontos, de qualquer forma, podem ser lidos de forma independente, se não for possível lê-los de uma vez. Vamos lá:
* Por vezes serei um pouco
irresponsável na utilização de termos e conceitos aqui. Os mais xiitas podem
ficar bravos com o emprego de expressões como “direito de significar” ou mesmo
com o uso indiscriminado da palavra “guerra”, só para ficar em dois exemplos.
São questões problemáticas, admito. Eu mesmo sou crítico ao emprego do conceito
de guerra para se falar do confronto entre Estado x Poder Paralelo. Mas aqui
usei algumas dessas palavras/conceitos para simplificar e também reproduzi para
ficar em consonância com o discurso dos personagens do filme. Espero que não
fira os ouvidos (ou olhos) mais sensíveis.
1. MULHERES: salta-me aos olhos
a força do feminino nas comunidades periféricas dominadas pela violência. Já
havia presenciado no
Borel, onde trabalho, ao ouvir os relatos das mulheres da
favela tijucana. No filme, isso fica ainda mais claro.
Quando os policiais
pegam um moleque, supostamente “bandido”, são elas que vão atrás, não desgrudam
dos homens de farda, para garantir que eles levem o garoto em segurança à
delegacia. “Se não formos atrás, eles levam lá pra cima e matam”, relata uma.
Então elas perseguem os PMs, brigam, obstruem sua passagem, xingam... encontram
força sabe-se lá de onde para resistir aos arbítrios e impedir que aconteça o
“mal maior”.
Também são essas mulheres que sobem o morro correndo para impedir
que seus irmãos, maridos, vizinhos sejam julgados pelo poder paralelo. Impedem
a execução, clamam por justiça, conseguem evitar o pior. É impressionante. É
comovente. É desafiador.
2 – CRIMINALIZAÇÃO DA POBREZA: o
problema maior não é o tráfico, não são as drogas, não é a violência. O
problema é a favela, é ela que precisa ser controlada. Ela representa o perigo,
ela representa a desordem. Tem que segurar o morro.
Logo de cara, o filme traz um
dado, dito por um dos entrevistados: há estimativas de que haja 100 mil
bandidos no Rio, a maioria deles em favelas. Logo mais, já pro fim do filme,
uma outra fala: “São dois milhões de pessoas morando em favelas no Rio, como
você controla esse povo todo?”. Há uma discrepância entre os tais 100 mil
bandidos e os dois milhões de habitantes das favelas. Se todos esses supostos
bandidos morarem em favelas, são apenas 5% da população. O número é
infinitamente menor, acredito. Mas mesmo que seja este mesmo, são CINCO POR
CENTO.
Lembro-me de um artigo do Jailson de Souza e Silva, que até utilizei em
minha monografia, em que ele citava que o número de universitários da Maré
(1,67% da população em 2000) era maior que o de traficantes – apesar da
comunidade ser definida, na mídia e pelo Estado, apenas como um dos redutos
mais perigosos do tráfico carioca. Um tipo de discurso que interessa a quem
(vamos lembrar que todo discurso tem caráter de construção social, já dizia
Foucault) e serve a que interesses, a que tipo de política? A resposta vem da
boca do chefe da Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro na época, Hélio Luz, um dos
entrevistados para o filme:
“Nós fazemos a segurança do
Estado (...) Temos que manter os excluídos sob controle. Vivemos numa sociedade
injusta e a polícia garante essa sociedade injusta”, disse ele, de forma nua e
crua. Nem é preciso dizer que foi exonerado pouco tempo depois...
3 - MOTIVAÇÕES: outra questão
suscitada no documentário é sobre as motivações para a entrada do jovem no
tráfico.
É um desejo de transformação social coletiva ou apenas necessidade
econômica individual? Essa questão também se fez latente nos protestos que
acontecem na
Inglaterra: os jovens estão nas ruas porque querem mudar a
sociedade injusta ou apenas querem se incorporar à sociedade do consumo, de
onde hoje são excluídos? As duas questões, distintas, apontam para um mesmo
fato: a sociedade é desigual e isso acaba sendo gerador de tais movimentos, de
uma forma ou de outra. Mas vamos pensar um pouco mais especificamente sobre o
tráfico.
No filme, vemos alguns dos
“soldados” do tráfico reclamarem das injustiças do mundo e de como a favela é
discriminada e desassistida. Acreditam que o tráfico ajuda a mudar essa
realidade, ao garantir ao menos que algumas das necessidades dos moradores
serão atendidas (a oferta de gás e medicação para a população são os exemplos
mais clássicos). Eles estariam, desse modo, ocupando um espaço que o Poder
Público não ocupa. Suprindo uma lacuna que o Estado deixou.
Por outro lado, os discursos
revelam um desejo de “significar”: entram no tráfico para serem respeitados,
para poderem comprar tênis da Nike, para que as garotas (do morro e do asfalto)
olhem para eles, afinal “as cocotas ficam doidas quando veem um cara com arma”.
Sem acesso à escola, ao mercado de trabalho formal, à “porta da frente” da
sociedade do consumo, optam pela “via alternativa”.
Não é simples pensar essa
questão. Corre-se o risco de romantizar essas histórias e isso definitivamente
não contribui para refletir sobre o quadro. E existe outro ponto importante que
gostaria de considerar ainda neste tópico: para além das questões de mudança
social nas comunidades ou ascensão econômica individual, o crescimento das
facções mudou o caráter do tráfico e a guerra, outrora entre o poder paralelo e
o poder “oficial” (por negligente que fosse), se transforma sobretudo numa
disputa de poder, de ocupação de territórios.
As favelas se transformam, mais
que nunca, em campos de batalhas de facções rivais e os moradores são, sem dúvida,
os que mais saem perdendo. E essa guerra entre facções também é um fator
motivador, uma vez que ao ingressar nessa guerra, o jovem pertence a um grupo,
faz parte de uma comunidade e batalha pela supremacia deste seu grupo. O Estado,
para não perder o costume, se torna ainda mais ausente (é possível?) e utiliza a
violência entre as facções como justificativa para não entrar nessas
comunidades.
Então, acho que as motivações
para a entrada dos jovens no tráfico precisam ser vistas a partir desses três
aspectos: são causas sociais, econômicas e políticas (no sentido de disputa de
poder). Complexo. Bem complexo.
4 – O MITO CV: todos sabemos a
história de criação do Comando Vermelho. Os presos políticos e os presos comuns
que, postos num mesmo espaço, conceberam uma das principais organizações não
governamentais (rs) da história recente do estado do Rio. A mistura explosiva
teria resultado em lideranças com forte crítica política ao Estado e também
bastante eficientes em práticas consideradas criminosas. Mas o CV cresceu, se
tornou uma mega estrutura e enquanto a face “criminosa” ainda assusta a
sociedade, o viés político ficou em segundo plano. Se perdeu? Acabou? Nunca
houve? É, mais uma vez, romantizar a história e transformar bandidos em heróis
populares?
Não sei e nem quero entrar nessa
discussão. Só se sabe que com o crescimento, a organização criou ídolos e
admiradores, sobretudo entre aqueles garotos com desejo de significar, como
falei acima. E o que acontece é que tudo é CV. Os garotos dizem: “Sou CV”,
“CVRL”, “Vermelhooo”. Muitos sequer já chegaram perto da organização. Outros,
mesmo que façam parte, nem desconfiam de como o Comando surgiu, quem eram seus
líderes.
A questão é outra: ser do Comando
Vermelho concede uma posição de destaque. Os garotos querem dizer que são CV,
como se significasse que pertencem a uma linhagem real, são puro sangue,
mangalarga. Assim como estudar na PUC ou morar no Leblon, ser Comando Vermelho
concede status. Simples assim.
5 – OS DISCURSOS: me impressiona,
ainda, a semelhança entre os discursos dos soldados do tráfico e os soldados da
PM. Em determinada sequência do filme, o repórter pergunta: “e qual é a
sensação quando você mata o ‘inimigo’?”. Primeiro o bandido: normal, às vezes
tem até comemoração. Depois, o policial: é sensação de dever cumprido.
Em uma palestra que assisti
recentemente, o comandante geral das UPPs, coronel Robson, falava disso,
comparando um funk proibidão ao filme Tropa de Elite (I). É cruel e revelador.
Quem viu o filme (quem não viu?) vai se lembrar da cena final, em que André é
considerado policial de verdade por executar, a sangue frio, o inimigo. O funk
falava algo neste sentido também, não me recordo a letra. Mas é esse o espírito.
Ambos os lados vão para a batalha
vestidos com a capa da insensibilidade. Ambos acreditam estarem indo para uma
guerra. Matar inimigos são apenas ossos do ofício. No caso do bandido, os
inimigos são os policiais ou mesmo outros bandidos, de facções rivais. No caso
do policial, os inimigos são os bandidos.
Afinal, “
homens de preto, qual é sua missão? Subir pela favela e deixar corpo no chão!”. O grito de guerra,
entoado pelos de farda, também vale para os descamisados. Em meio a tantas
aparentes diferenças, os dois lados do front de batalhas se igualam – e não só
em seus objetivos. Nas favelas do Rio de Janeiro, nas batalhas cariocas
transmitidas em forma de espetáculo mundo afora, a tragédia se dá em tons
dramáticos:
são pobres matando pobres. Jovens matando jovens. Preto morrendo e
preto matando. Cada um sob sua farda, portando seu emblema, vai eliminando seu
rival, tão oposto, tão parecido! É ou não é de fato uma grande tragédia?
(Um agradecimento especial à titia Giovana Damaceno, que revisou esse texto e me deu coragem para publicar!)