O milagre da poesia*
Elisa Lucinda ministra aula aberta de
Poesia Viva em sua Casa Poema, no Rio de Janeiro
Fotos: Natássia Carvalho
Rio
É como se fosse uma pregação religiosa.
Hipnotizados, em profundo silêncio – quebrado aqui ou ali por gargalhadas e
comentários bem pontuais -, todos ouvem atentamente a poetisa: “A palavra
também faz parte da estética. Pode enfeitar ou enfeiar a pessoa. A poesia é o
instituto de beleza das palavras”, começa Elisa Lucinda, para os trinta pares de olhos atentos a cada
traço, à sua menor expressão.
O pequeno templo de culto à poesia fica em um imóvel aconchegante na Zona Sul carioca |
O cenário é a Casa Poema. Um imóvel colonial, decorado com recortes de jornais, trechos de poesias e peças artesanais, com uma sala de visitas aconchegante e um pequeno e gracioso teatro, além de uma série de cômodos transformados em ambientes de convivência, serve de lar para um dos principais centros de culto à poesia no Rio de Janeiro.
Elisa é a idealizadora do espaço, que
desde 2008 está sediado na rua Paulino Fernandes, em Botafogo, na Zona Sul
carioca. A Casa, gerida em conjunto com a atriz Geovana Pires, abriga a Casa
Lucinda de Poesia Viva, que oferece cursos e workshops de oficina falada
durante todo o ano. Além de poetas de várias idades e gerações, as atividades
acolhem profissionais de todas as áreas – de médicos a advogados, militares e
analistas, e até mesmo uma freira.
No dia em que visitei o espaço, Elisa
comandava uma aula aberta e gratuita para pessoas vindas de vários pontos do
Rio e até mesmo de outros estados. “Vamos aproveitar para fazer o workshop
agora porque estamos de férias”, comenta um casal da Baixada Fluminense. “Você
precisa ir ao Maranhão”, recomenda outra visitante à professora.
Durante a aula, Elisa protesta, com seu
humor afiadíssimo, contra a forma com que os poemas são declamados Brasil a
fora e mesmo em salas de aula – frios, formais, sem vida. “Muitos jovens não
querem ouvir falar de poesia, há um preconceito porque ela é recitada de forma
tão formal, que afasta. E justo os jovens, que são os que mais sentem, sofrem,
amam; o esforço dos poetas é traduzir estes sentimentos humanos”.
A Casa, assim como as palestras que
ministra em outros espaços, tem a função de reaproximar as pessoas dos textos
poéticos. Mais que isso: resgatar a poesia de um lugar escondido em que foi
posta e provar sua utilidade na vida cotidiana. “Enquanto a filosofia gasta
compêndios para nos explicar alguma coisa, a poesia gasta uma página”,
exemplifica.
A aula aberta transcorre com testemunhos
de pessoas que passaram – e permanecem – na casa. O jovem poeta consumidor
compulsivo dos workshops; o aluno transformado em professor; o gerente de
Recursos Humanos que redescobriu seu olhar sobre as pessoas após frequentar o
curso. Todos os testemunhos são encerrados, claro, com um poema recitado para deleite
e prazer do público fiel a cada palavra. “A poesia dá uma limpada no parabrisa,
te ajuda a acessar partes de você mesmo que normalmente ficam esquecidas”,
exemplifica mais uma vez Elisa.
Depois de quase duas horas, a aula chega
ao fim. Antes, a atriz e poetisa, que já vendeu um milhão de cópias de seu
livro “Parem de falar mal da rotina”; levou mais de 200 mil pessoas ao teatro
com a peça de mesmo nome; foi enredo de escola de samba; e recebeu elogios
públicos e efusivos do Nobel em Literatura José Saramago; convida os presentes
a um exercício de memorização. Quase que em forma de oração, todos declamam os
versos de “O Ensinamento”, de Adélia Prado, ensinados pela nova professora.
É hora de ir para casa. Sair do mundo de
poesia em que se esteve imerso. Ou, ao contrário, não mais sair do mundo para o
qual, naquela noite, o repórter descrente se converteu.
A poesia, já dizia Elisa, é a bíblia
para os que “crêem na eternidade do verbo, na ressurreição da tarde e na vida
bela. Amém!”.
* Essa matéria originalmente foi produzida para ser publicada no jornal Volta Cultural. Por questões editoriais (prazo, adequação ao tema da edição, etc), não foi possível. Guardada em uma gaveta aqui no meu computador, resolvi publicá-la. Por gostar dela e, sobretudo, por acreditar na força desse projeto.
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