Apresentador: (em tom lacônico) Tiroteio deixa mortos no Jacarezinho. (de repente, o tom fica eufórico) E nós fomos a primeira equipe a chegar! As imagens que vocês vão ver são exclusivas!
Escutei o monólogo enquanto passava em um trailler no fim de uma tarde. Não me atentei para o canal, mas a voz do apresentador não era totalmente desconhecida (suspeito que os apresentadores desses programas espreme-que-sai-sangue que enchem as grades das TVs brasileiras façam curso de locução em um mesmo local, tamanha a semelhança).
Levei certo choque com o tom do apresentador, ao vibrar com a "exclusividade" da emissora na cobertura da tragédia.
Lembrei de Bourdieu, em suas ásperas críticas às práticas jornalísticas na TV, sobretudo com relação à desenfreada busca pelo furo. Mas também quando relata a recorrência no jornalismo dos fatos-ônibus.
Pensei em Kellner, que havia acabado de ler, o livro ainda em minha mochila, com suas observações sobre a cultura da mídia e seus efeitos para a conformação de certos padrões e ideologias em nossa vida social.
Recordei, ainda, com bastante carinho, das horas a fio de discussões junto a meus colegas de faculdade sobre o papel da imprensa na sociedade e sua predileção pelas notícias trágicas, sua insensibilidade nas barbáries, sua gananciosa corrida pela audiência.
As aulas de jornalismo na faculdade, ao menos aquelas boas aulas, eram sempre regadas a polêmicas e muita discussão. Em geral, era um exercício de crítica à mídia - críticas tão ácidas que acho que Benjamim, Adorno e outros teóricos de Frankfurt iriam se orgulhar.
Lembrar da faculdade foi o que me tirou da indignação que o apresentador me causou.
Entramos na faculdade, todos nós, com vontade de mudar o mundo, como é comum aos estudantes de jornalismo. Mas estávamos sedentos por descobrir as ferramentas e instrumentos necessários para fazer essa mudança, a partir de nosso "lugar" de jornalistas.
Eu me recordo de quando fomos apresentados a Foucault. Sexta-feira à noite, quinto período, Cultura das Mídias. Uma professora jovem com um texto indecifrável nas mãos. Levamos para casa, lemos, e na semana seguinte voltamos com um pedido: traduza. E parágrafo por parágrafo, a "trinta mãos", traduzimos. E dali em diante, e pela primeira e única vez em quatro anos, a sala não ficou vazia em nenhuma sexta-feira daquele semestre.
McLuhan, apresentado alguns anos antes, também nos encantou com suas reflexões sobre as ferramentas enquanto extensão do homem. Era fascinante. Da mesma forma, entusiasmados ficamos quando o Observatório de Imprensa tornou-se material semanal de aula e as discussões geradas no programa eram reproduzidas naturalmente em sala. Ou ainda quando produzimos nosso primeiro curta-metragem profissional. Boas lembranças!
Era uma turma diferenciada, sem dúvidas. Que ensaiou uma "greve" para aquisição dos laboratórios, mas nunca conseguiu organizar um churrasco sequer durante todo o tempo de faculdade.
Os caminhos naturalmente se separaram e, quase um ano após a última aula, mantenho contato constante com poucos - ainda que fale esporadicamente com a maior parte. Alguns estão na TV, outros na rádio, em assessorias, impressos, ou ainda encontrando seu lugar no mundo.
Neste último grupo me incluo. Talvez esteja solitário até. Não estou na TV. Não estou no rádio. No impresso. Tampouco em assessoria. Quando alguém me pergunta o que estou fazendo, em geral demoro cinco minutos para tentar explicar - e não tenho certeza se a pessoa entendeu.
Estou procurando meu lugar no mundo. Descobrindo qual é o meu mundo. Às vezes acho que é mais pra lá, depois tenho certeza que é pra cá, e sigo tentando descobrir.
Sou jornalista. É o que sei e muito me orgulho. Há alguns dias, quando no cartório me perguntaram sobre qual a minha profissão, não exitei em responder. Porém, mais que isso ainda não sei. Estou descobrindo, vivendo pra descobrir, experimentando.
Quem sabe um dia eu não descubro? Se é do lado de Bonners, Barcellos, Morenos e Padrões ou do lado de Kellners, Foucaults e Benjamins. Ou talvez de lado nenhum. Do lado da Bia, apenas, porque não?
Esse não é um momento de certezas. Para mim, é um momento de dúvidas. E, hoje, são essas dúvidas que me movem.
Pra onde?
Pra frente...
6 comentários:
Adorei relembrar nossos momentos ao ler esse texto.
Acho que na verdade, todos ainda estamos nessa busca. Quem somos nós? A que viemos? O que queremos? O melhor disso tudo? É isso que nos move!
Somos jornalistas, sempre fugimos do óbvio.
Um grande beijo!
Não há como esquecer da aula do Marcelo. Em discussão calorosa, em meio às críticas aos jornalistas, ele diz em tom quase irônico algo do gênero: Você quer ser repórter pelo resto da vida ou quer ser chefe de reportagem (gestor)?! A resposta, com o tom que a pergunta exige, é simples, "serei jornalista".
Independente da forma, estamos aí, criando e recriando, pq no fundo pode ser que esta seja a graça maior.
Que bom que se lembra de McLuhan. Fico contente por isso.
Permita-me discordar: você não está em dúvida, você está vivo. É muito simples isso.
Quem passa pela vida em brancas nuvens, vegetando, aceitando, se conformando, não vive, apenas passa.
Seu texto é prova de que você está enxergando, experimentando, escolhendo, pensando, elaborando.
E isso, meu querido, é privilégio de muito poucos atualmente.
Parabéns por se permitir e conseguir refletir.
Não se amofine; viva.
Uau,
Meu parceiro,
Me emocionei MUITO ao relembrar do nosso mundo particular acadêmico, onde a única certeza que tínhamos que sairíamos dali JORNALISTA!!!
Eramos protegidos de certa forma por nossos "mestres", podíamos errar em nossas ações e convicções sem pagar o real preço, afinal, ainda éramos acadêmicos sedentos por descobertas, e ali estavam prontos a orientar-nos...
O poeta Rainer Maria Rilke orienta que antes de encontrar uma resposta é preciso viver a pergunta intensamente, aí sim, teremos condições de encontrar as repostas. Nós fizemos isso por quatro anos, e hoje sabemos quem somos.
Essa incerteza de que lado estamos, pra que lado vamos, talvez seja eterna, e se isso acontece é porque estamos na labuta, é porque estamos em busca, é porque estamos em movimento, é porque estamos vivendo essas perguntas...
Picasso disse que a inspiração existe, mas é ela que nos encontra. E ela só nos encontra em ofício.
Então que venham todas as incertezas, que venham todos os conflitos, que venham todas as complexidades da profissão, pois estaremos de pé e firmes cavando, demarcando, postulando o nosso lugar.
Saudade de todos!
Sucesso ao quadrado elevado a décima potência a todos!
Despeço-me em clima saudosista:
Pro alto e avante!!! (igual ao desenho do Super Boy), para quem não conhece esse bordão, rs.
bjosssssss
Rss, esqueci de assinar
Leslie Assis(Lele)
Por todos os comentários, aqui, no twitter e no face, acho que este foi um dos posts mais especiais que escrevi. Fiquei muito feliz de ler as recordações de todo mundo!
Estamos todos nesta busca, Gabi? Que bom, não estou solitário no grupo, rs.
Fernanda... que fantástica essa sua recordação! Dá vontade até de incluir no texto. Não lembrava, foi demais mesmo esse dia!
McLuhan e as aulas de História da Comunicação. Como esquecer, titia?
E Le, nem precisava ter assinado, sabia que era você! rs Para o alto e avante, sempre!
Valeu, galera!
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