Noel Rosa
Não nasci em Vila Isabel, bairro onde hoje moro. Talvez por isso vacilei ao abraçar o samba. Mas eis que em um primeiro de maio, em 2008, Beth Carvalho me trouxe à luz – e desde então o samba faz parte de mim.
O samba é meio sobrenatural. Religião, na raiz da palavra, tem a missão de “ligar”. Os homens uns aos outros, e também à transcendência. Não seria heresia dizer, portanto, que o samba também é minha religião. O pai do prazer, o filho da dor, é o grande poder transformador.
Bem, faço todo esse prólogo para explicitar um pouco do que o samba representa para mim. E sobretudo para lhes contar, logo em seguida, que no último fim de semana fui a um dos grandes templos do samba carioca: a quadra da minha amada Mocidade Independente de Padre Miguel.
(Desde 1995 sou Mocidade. Pode parecer contraditório ser fanático torcedor de uma escola de samba desde os sete anos, exaltar todos os seus hinos, saber de cor os enredos das últimas décadas, se emocionar com suas passagens pela avenida, e só me apaixonar pelo ritmo em si mais de uma década depois. E talvez seja uma contradição mesmo. Eu sou uma. Todos somos.)
Quem me conhece sabe que tipo de emoções a visita à quadra de minha escola pode me proporcionar. Acompanhe se quiser:
13:20 – Chego à estação de trem. Minha primeira
vez sobre trilhos também. A composição vai partir apenas 13h47.
13:48 – Entro no trem e sei que agora será quase uma hora de viagem ao meu destino. Até lá, ansiedade (cabe dizer que a viagem de trem daria uma crônica à parte. Deixo para a próxima).
15:00 – Peço a benção a todos os deuses do samba. Cartola e Mestre André à frente. Hora de entrar na quadra. Alô meu povão de Padre Miguel...
15:34 – Já de posse da feijoada, a primeira grande emoção: Ziriguidum 2001 entoado no palco. Na mesa à minha frente, um senhor dribla sua deficiência visual, dribla sua dificuldade em pronunciar palavras, e canta. E chora. E me arrepia.
16:00 – Ainda no palco, a banda toca sambas-enredo de várias escolas. Muitos torcedores destas escolas estão na quadra. Impossível não fazer uma analogia com o quão impensável seria executar um hino de exaltação ao Vasco em uma festa do Flamengo...
16:20 – Ouço a primeira... deixa pra lá!
16:30 – A bateria da Beija Flor chega à quadra e é reverenciada como vencedora do carnaval carioca. Impossível não fazer analogia...
17:00 – Uma família se senta na minha mesa. Dois casais, quatro Independentes. Me dizem um sincero seja bem vindo. Enfim, duas horas depois, me sinto inteiramente em casa.
17:16 – Não preciso conhecer nenhuma outra escola, nenhum outro povo, nenhum outra quadra. Não existe mais quente, estou certo!
18:10 – Estrelinha da Mocidade, a escola mirim, dá show ao som de O Grande Circo Místico. Outra lembrança inevitável: Renato Lage e tudo que ele representa para essa geração que aprendeu a gostar de carnaval (e a ser Mocidade) através da magia que ele fez na avenida. Saudades!
19:06 – A bateria já arrepia tocando Parabéns para Você, amigo. E o que veio a seguir é impossível de ser descrito. O Mestre André sempre dizia / Ninguém segura a nossa bateria / Padre Miguel é a capital / Da escola de samba que bate melhor no carnaval...