De vez em quando, deixo a máscara da imparcialidade cair. Aliás, luto constantemente contra esse falso ideal. Afinal, não sou robô. Sou jornalista, apenas. E como tal, tenho direito de ter opinião sim.
Mas quero deixar de lado até a sobriedade que deveria acompanhar a opinião de um jornalista (é assim que os Manuais ensinam, ao menos). O que está acontecendo na imprensa brasileira é muito triste e não poderia ser expresso com menos indignação e verdade* do que vou tentar expressar nas próximas linhas.
A vitória de Lula, em 2002, sem dúvida é um dos principais fatos da história recente do país. Simbolicamente, não sei se já houve (ou se ainda haverá) um momento tão forte para a nossa democracia. Mas uma eventual vitória da Dilma representará um passo além – se não historicamente, ao menos em nosso contexto atual.
Sei que sou jovem, mas vivi e li o suficiente para poder questionar: não sei se em algum outro momento forças tão poderosas se moveram de forma tão explícita contra uma candidatura. Não sei se já houve, em algum outro momento, uma tentativa tão descarada de desconstrução de uma figura pública como acontece agora. Há pelo menos um ano, antes portanto da pré-campanha até, as manchetes dos jornais evidenciam o que digo. Um ano de infinitas tentativas de minar uma pessoa, um projeto.
Dilma eleita em 03 de outubro, então, tem muito mais que um valor simbólico. Tem um significado prático: me arrisco a dizer que mais que Lula em 2002, mais que Lula em
Já sabia que uma mulher, de esquerda, indicada por uma liderança operária, não seria eleita impunemente. É muito simbolismo, muita quebra de paradigmas, muito revolucionário para a elite mais reacionária deste país engolir. Mas, sinceramente, não esperava que fossem descer tão baixo.
Como estudante de jornalismo, repórter de política, fico muito triste. Mas como brasileiro, me alegro de perceber que o povo, tão humilhado e subjugado ao longo da nossa história, responde à altura e já pensa com sua própria cabeça. Vê com seus próprios olhos e grita para os barões: “Otários! Será que não veem que tamanho esforço é inútil? Agora sou eu que faço as minhas escolhas! Dispenso a ajuda de vocês, ninguém mais pensa por mim...”.
É isso: acho que essa eleição tem um significado a mais. Em 2002 foi iniciado um processo de transformação do povo brasileiro, e este processo se consolida agora. O voto que os milhões de brasileiros darão daqui a quinze dias não será apenas mais um voto. Será um passo firme em direção à liberdade...
A Igreja
Vou abrir aqui um espaço para lamentar uma outra atuação nesta reta final de campanha. Assim como critico alguns movimentos feministas por tratarem o aborto como um monotema, alguns movimentos da Igreja também têm me irritado profundamente ultimamente.
Reduzir o debate eleitoral à questão do aborto é, no mínimo, ignorância – quando não má-fé. Acho que é um dos temas da pauta de debates sim, todos conhecem minha posição muito transparente com relação ao assunto**, mas não dá para considerar este como único ponto relevante de um programa de governo.
Estes dias recebi um folheto amarelo, assinado por alguns bispos e por uma comissão eclesial, que, depois de fazer uma série de ataques ao PT, dizia: “não vote em partidos e candidatos que apoiem o aborto”. Não acreditei.
Então é só isso mesmo que importa? Dane-se se uma educação sucateada! Dane-se que jovens sejam exterminados! Dane-se se querem vender o país! Dane-se se a economia é colocada acima da vida! Dane-se tudo, menos o aborto! É isso mesmo?!
Não creio que a mensagem de Cristo se resumia a isso. Acho que, pela consciência cristã, outros aspectos também merecem relevância: cuidado com os pobres, respeito aos direitos humanos, vida digna à população (e aí inclui saúde ampla, educação de qualidade, reforma agrária...), ética do candidato, entre outros. Mas isso parece não importar. O que importa é o que X acha sobre o aborto. Se é favorável à descriminalização, fogueira nele!
Só para exemplificar a questão, de uma forma um pouco mais palpável: Bush sempre foi contrário ao aborto (e outros temas polêmicos que frequentemente dividem governo e igreja); já Obama é favorável à descriminalização e está fazendo isto nos EUA. Por essa lógica, as mesmas comissões que pedem voto contra o PT, também pediriam voto para Bush – ou Jonh McCain, na época.
Bush matou milhares de pessoas no Iraque? Sim. Matou outras milhares no Afeganistão? Sim. Negou-se a assinar acordos ambientais? Sim. Colaborou para o colapso financeiro que destruiu milhões de empregos em todo o mundo? Sim, claro. Mas, e sempre tem um mas, era contrário ao aborto. Se esse for o único parâmetro, votemos em Bush, fieis. (e, desculpem, a comparação não é absurda. É muito real e próxima do que acontece aqui! É só observarem com atenção).
Enfim, fiquei bastante triste. Além da redução do debate eleitoral, o panfleto amarelo é parcial e omite informações importantes em relação ao tema que deseja tratar – o aborto. Esquece de dizer que o PV também é favorável à descriminalização da prática. Que foi no governo do PSDB que foram criadas duas das três normas técnicas existentes que facilitam o aborto***. Que o PSOL diz que a igreja age com hipocrisia ao tratar do tema. Ou seja, todos têm teto de vidro ao falar do assunto. Por que o ataque tão sistemático a um partido, apenas?
Apesar de triste, a questão não me surpreendeu. O manifesto saiu de uma corrente (ou um movimento) da Igreja que tem como uma das suas figuras mais reverenciadas um professor que chama a ditadura militar de “Revolução de
O que me conforta é que para cada um Felipe Aquino existem dez Paulo Evaristo Arns, dez Freis Beto, dez Waldir Calheiros... Assim seja!
* Minha verdade, que fique claro!
** Sou contra, aboslutamente contra. Em todas as situações – até nas já garantidas por lei.
*** As normas técnicas editadas pelo Ministério da Saúde de FHC são “Prevenção e Tratamento dos Agravos Resultantes da Violência Sexual contra Mulheres e Adolescentes” e “Gestação de Alto Risco: Manual Técnico”, ambas regulamentando o aborto nos casos de estupro e gravidez de risco. Em 2004, o governo Lula lançou a “Norma Técnica de Atenção Humanizada ao Abortamento”, que proíbe o hospital de comunicar à polícia o aborto, quando for algum dos dois casos previstos por lei.